Crer é descrer – disse de mim pra
mim dia desses. No momento em que me dei
conta de que o rosto que eu via no espelho não era real, que eu acumulara máscaras
sobre máscaras ao longo da existência, entendi também que a face do deus que me
mostraram desde a infância também não era real. Se eu usava máscaras, deus também
usava. E fui querer arrancar as máscaras do criador, se é que ele existia.
Caminhos árduos os de quem busca
decifrar os mistérios maiores sem compreender os pequenos mistérios. Um dia li
que o Mestre era a última ilusão a ser removida no caminho iniciático. E eu já
estava atolada em tantas ilusões. Como um relâmpago, um pensamento cortou minha
mente e me atordoou: deus é a última ilusão a ser vencida. Como assim? Não, não.
Sim, sim, sim. Mas quem não teme buscar as verdades não pode temer a dúvida. “Deus
é o inconsciente” – viera Krishnarmurti incendiar os conflitos tempos depois. Não
foi assim que acabei querendo caminhar para trás e buscar primitivamente a
crença num criador.
De deuses raivosos a deuses
complexos, fui encontrando, aturdida, várias facetas de um criador, que se
afastava de mim mais e mais, quase desaparecendo num emaranhado de
terminologias, hierarquias, esquizofrenias. E, se do lado de fora estava tudo
cada vez mais confuso, eu precisava estar atenta ao mundo interior. Aos sonhos,
sobretudo, que revelam a que altura da caminhada estamos.
Num sonho recente, o eu onírico
precisava de ajuda e não sabia a que deus recorrer. O momento era urgente, não
era possível perder tempo. Sem muito pensar, gritei: “Meus ancestrais, me
ajudem!”. E a ajuda veio. Quem eram eles exatamente? – questionei, já acordada.
Racionalmente, não sabia. Mas foi por eles que chamei convicta. E lembrei da minha história, minha infância,
quando um deus não se fazia tão necessário e visível, mas estava lá, de
qualquer modo. Estava na Natureza, esse grande oráculo que respondia às minhas
questões essenciais. Se a coruja piava sobre o telhado, algo de negativo estava
sendo anunciado. Se a esperança – aquele bichinho verde – aparecia, podia
acreditar que tudo daria certo. A borboleta dançando ou o beija-flor ruflando a
asas sob os meus olhos apagavam todos os temores e anunciavam dias iluminados
no futuro.
Os oráculos. Todos os povos da
antiguidade tiveram oráculos – refleti algumas vezes. Conheciam instintivamente
as analogias entre a mente individual e a mente cósmica. Dialogavam comumente
com o mundo ao seu redor. De acordo com a sua referência cultural, os povos não
deixaram de encontrar um meio de comunicação entre céu e terra, entre o
particular e o coletivo. E a Natureza – essa que desaparece aos poucos da vida
do homem – foi, por muito tempo, um grande oráculo para os antigos. Assim como
continuou sendo para aqueles que puderam vivenciá-la nos primeiros anos de
vida. Um oráculo que me faz falta a cada árvore derrubada, cada água poluída,
cada animal extinto.
Fico assustada muitas vezes
quando vejo a reação das pessoas diante da aparição de um inseto: “Mata, mata!”.
Os bichinhos que eram mensageiros e ajudavam a confiar num futuro luminoso ou a
atender o passado obscuro. Acredito que, em alguma parte de nós – mesmo os que
não tiveram uma relação íntima com a Natureza – ,tudo isso tem existência forte,
ainda tem voz, abafada por tantas outras referências que se fizeram mais “importantes”
intelectualmente.
Sempre flertei com os oráculos
mais populares: tarô, runas, I Ching... No entanto, nenhum me fala tão
fortemente quanto a Natureza. Em relação a isso, lembro de muitas vezes em que
obtive respostas através das árvores, dos pássaros, da chuva, do sol...
Recentemente, indo a um bairro tradicional de Salvador, acompanhando uma amiga
fotógrafa, que procurava escadarias para um ensaio, debruçamo-nos sobre uma
murada onde havia delicadas flores vermelhas. Eu estava inquieta. De repente,
um beija-flor aproximou-se inusitadamente de nós, numa distância tão mínima,
que nos pareceu estranho. Silenciamos e olhamos cada um de seus movimentos.
Ouvimos o ruflar de suas asas. O tempo parecia ter parado. De repente, alçou
voo tão depressa que não pudemos acompanhá-lo com o olhar. Olhamos encantadas
uma para outra e ouvi dela algo tão simples e belo, que traduziu tão bem o espírito
de nossos ancestrais: “Deus olha por nós, não é?”.
Lá dentro de mim, por mais que
qualquer teoria contradiga essa percepção, não há símbolos que me falem mais
alto do que aqueles que conheci naturalmente na infância e adolescência. É tão difícil ver a esperança na cidade
grande, cheia de concreto, com árvores que caem abaixo a cada dia; mas ela
ainda aparece. O sentido da sua chegada continua o mesmo e o espanto de ela
conseguir chegar à cidade só reforça a convicção no meu oráculo original: a
Natureza!
Hoje, lamentavelmente, as
crianças e jovens acordam e se desenvolvem sem a possibilidade dessa comunicação
oracular com os bichos, as árvores, as pedras, os rios... Nos testes psicológicos,
nas abordagens terapêuticas que utilizam a expressão artística como caminho,
ainda podemos solicitar: “Desenhe uma árvore...”. E ainda sabem o que é árvore.
Dia chegará em que perguntarão: “O que é isso?”. Ou desenharão um poste....
5 comentários:
taninha,
foi com alberto caeiro, heterónimo pessoano, que percebi como as sensações - forma privilegiada de nos relacionarmos com o mundo - nos aproximam da natureza e de deus, não sendo ambas uma só entidade, mas antes manifestações diversas do sentir. como os panteístas, afinal: ele manifesta-se em cada pequeno detalhe da natureza.
beijinho!
este mergulhar-se anda difícil nesta contemporaneidade de imagens rotas, de pouca significação ao instante de contemplação, vive-se no rápido, no urgente
beijos
Querida, quando o mistério é grande demais, as vezes vale até nem questiona-lo... Como diz Osho: apenas una-se ao mistério!
Beijin
Tânia,
Sou suspeito para comentar este seu belo texto, pois vivo no campo rodeado de passarada e arvoredo.
Direi apenas que me agradou sobremaneira.
Beijo :)
é Tânia
quanto MISTÉRIO
mas
transcendendo
crer é se entregar a ele
coisa que a gente não deveria fazer só no fim da vida
bjs
e um ar sereno procê
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