17 de outubro de 2012

Sonhar com as mãos








Libertadas da tirania cerebral, as mãos podem elaborar imagens, construir objetos de grande significado simbólico, expressão de conteúdos do inconsciente, que terão significado terapêutico, não só para o criador, mas muitas vezes para o próprio observador que saiba ver.
(Boechat)

“A obscuridade do que eu sinto deve primar sobre a clareza do eu vejo”.  Li a frase num texto referente a Bachelard e pus-me a pensar no misterioso mundo invisível que os olhos já não podem ver, porque nos tornamos prisioneiros de uma pretensa realidade, que exclui o que não faz sentido lógico. O que eu vejo é mais real do que aquilo que sinto? A realidade não é aquela que conhecemos quando cerramos os olhos físicos e nos entregamos à profundidade abissal?

Todos sabemos que os nossos dois hemisférios cerebrais possuem funções diferentes – um, o esquerdo, compreende o mundo sob a ótica da razão; o outro, o direito, é responsável pelo pensamento simbólico e pela criatividade.  Em equilíbrio, viveríamos bem mais felizes. Mas ninguém ignora que nos tornamos prisioneiros do hemisfério esquerdo do cérebro. Não é, portanto, por acaso, que estamos vivendo uma angustiante crise de criatividade, de originalidade.

Certa vez propus, junto com mais duas pessoas, fazermos uma oficina cujo título era justamente o mesmo que dou a este texto: Sonhar com as mãos. A proposta era trabalharmos com a argila, todos com os olhos devidamente vendados, entregues apenas ao devaneio das mãos, que resgatavam a intimidade com a terra e evocava o Deus criador dentro de cada um. O resultado do trabalho foi gratificante, porque as mãos sabem sonhar se as libertamos do jugo da razão. E o sonhador que sonha acordado recupera a confiança na criança que precisamos continuar sendo.

Anita, com quem convivi por mais de um ano, era uma entre tantos dos que não conseguem transcender a concretude do mundo, e sua rigidez tornava-a temerosa diante da vida, da existência, talvez porque soubesse, no fundo, da fragilidade desse território chamado de “realidade”. Um dia propus-lhe pintar de olhos vedados. Ela, que não acreditava que suas mãos pudessem criar sem a vigilância dos olhos, acabou entregando-se à tarefa, ainda que defensiva e desconfiada.

De sua “cegueira” nasceu um animal selvagem, correndo desembestado pela floresta. Da sua escuridão emergiu o instinto de um animal que estava aprisionado por uma vida inteira. Seus olhos externos enxergaram o bicho por entre o verde da floresta. Os chifres do bicho também foram devaneados pelas suas mãos. De algum modo, aquele animal viera dizer a Anita sobre um mundo que foge do domínio da razão. Um mundo pelo qual podemos caminhar, seguros, de olhos fechados

 – De onde veio esse animal? Como eu fiz isso? Ele nasceu de dentro de mim? Ele sou eu?
A razão tem fome de concretude, de solidez, de fórmulas e gráficos. Ela carece de sentidos constantemente. Na escuridão há animais correndo livres e estrelas longínquas que a mente não pode divisar. Das trevas emergem os símbolos guardados na caixinha do esquecimento, as faces que precisamos conhecer e integrar à nossa consciência.

Há um mundo obscuro que precisamos desvendar. Por mais incrível que pareça, ele é muito mais real do que o mundo que os nossos sentidos apreendem.  Jung sabia o que estava dizendo quando afirmou que quem olha para fora dorme; quem olha para dentro acorda e vive a realidade”.












13 comentários:

Bípede Falante disse...

Tania, minhas mãos me sabem mais que eu.
Minha racionalidade anda de mal comigo, brigando para ter um lugar além da carne.
E eu, bem, eu ando feito um pêndulo dentro de mim.

Gostei muito da sua reflexão.

Beijoss

Márcia Luz disse...

Bela reflexão! Que delícia a ideia e o título da oficina! Ah, se nossos sonhos pudessem sair da imaginação e caminhar até as pontas dos dedos...
Um grande beijo, querida!

Unknown disse...

essas coisas invisíveis que brotam, vicejam no de repente dos sentidos, Bachelard é mestre em florir súbitos,



beijo

nilson disse...

O mundo nos condiciona e nos limita.
Estamos sempre presos a tais cercas invisíveis e muitas delas fruto de nossa própria imaginação, ou razão distorcida.

Das mãos surgiu praticamente tudo que nos rodeia. É com as mãos que acariciamos, nos expomos, defendemos, seguramos, soltamos...

E no fim, concluimos, muitas vezes tarde demais, que não há nada a segurar. No universo tudo está solto, em movimento, paradoxalmente preso pelo nada. Apenas pelas forças e leis da física que parecem querer nos dizer: viver é movimentar, então movimente-se, caminhe, crie, faça, usufrua, permita-se...

https://www.facebook.com/EnquantoADorNaoPassa

cirandeira disse...

Olho para minhas mãos e nelas consigo ler toda a trajetória da minha vida, elas praticamente me
falam através dos seus sulcos, de suas veias saltadas, dos seus riscos na pele cada ez mais delicada.
Foi graças ao aparecimento das mãos
que o Homem desenvolveu a sua capacidade de pensar, de criar, de
fazer abstrações, por mais paradoxal que pareça, ou até por isso mesmo;cada uma delas é comandada por um dos hemisférios cerebrais, havendo até pessoas que
conseguem desenvolver habilidades
idênticas nas duas mãos (os ambidestros)
Conseguir concretizar algo que imaginamos através de nossas mãos é
como transformar um sonho em realidade, coisa que o Homem vem tentando fazer através dos tempos,
tropeçando e trocando de meridianos
às vezes :)
Gosto dos teus textos porque eles
sempre nos remetem às nossas origens, ao que realmente somos, nos re-ligam à nossa essência!

um beijo

Acredito que na próxima semana já estarei em condições de cumprir o
que te prometí :))

dade amorim disse...

A citação de Bachelard é um começo promissor, e a continuação do texto é do jeitinho que se espera - bom demais.
Além da razão, há tanto para viver e aprender! Esse "mundo obscuro que precisamos desvendar" é mesmo o que domina nossa vida.

Beijo e parabéns pelo texto, muito bom.

cirandeira disse...

Voltei para acrescentar que gostei
muuiito do novo lay out do blog!!!

beijoss

Domingos Barroso disse...

texto exuberante!

Tânia, eu nunca me enganei contigo,
nunca - tu és uma sacerdotisa!


beijo carinhoso
e boa noite.

Fred Caju disse...

Gostei da cara nova.

Anônimo disse...

Sou muito racional, mas a poesia me ajuda a me fazer voltar para este interior que precisa falar por mim, além de mim.

Beijo, Tânia.

Tatiana disse...

Mãos ao alto! Abaixo a tirania cerebral!!!
Tânia, q instigaste reflexão. A gente nunca para de pensar...distrair a mente é tarefa difícil até para os budistas.
Pessoa já dissera que "tudo o que em mim sente esta pensando"
Beijocao

Sônia Brandão disse...

Tânia, gostei muito dessa viagem entre o sonho e a razão.
Deu me livre daqueles que só ouvem a voz da razão. O que parece absurdo é que me instiga.

bjs

Unknown disse...

então filha, dormimos quando acordados, e acordamos enquanto dormimos..... equação ducaraio