Ao amigo Sam e às Anas Rosas de todos os tempos.
Ana Rosa passou a vida inteirinha sem saber do gosto do vinho. Sapato era um só, lustrado em dia de quermesse. “Pára de caraminholas”, ouvia a voz da mãe vinda do quarador de velhas roupas alvejadas. O corte na mão era feito de sonhos, hoje sabia. Quando os pensamentos saíam em revoada, a faca atravessava rápida a cebola e o sangue gotejava na panela sem cabo de antes de sua existência.
Caraminholas são sonhos – hoje ela sabe. Sonhos que nada têm a ver com os bolinhos adocicados esturricando no peitoril da janela de sua infância, à espera de compradores. Se vendia dez era festa. Quando sobravam muitos, eram para o café ralo da manhã seguinte.
Faz tempo que não chove – pensa olhando pra o alto. Quando menina, via formas nas nuvens e piscava intrigada os olhinhos avermelhados de pouco dormir. Os céus ainda hoje desenham sonhos, se – sob a tinta avermelhada dos cabelos esticados de agora – ainda reencontra uma ponta da Aninha que sonhava sonhos ardidos de cebola. “Pára de caraminholas” – rasga o tempo a voz ácida de Aurora, a mãe. E em tempo de evitar cortes e respingos de sangue na panela amassada, lembra-se que agora é Ana Rosa Nunes de Assis, tem marido importante e usa tailleur vermelho em eventos bastante diferentes dos leilões de prendas dos tempos idos.
A primeira vez que bebeu vinho já tinha o primeiro filho, e a casa de seu Alcides e dona Lelinha – os anfitriões do seu primeiro importante evento – rodou todinha. Riu e, discreta, tirou os sapatos por debaixo da mesa comprida de vidro. Então vinho dava queimação? Vinho fazia rodar o mundo? Vinho desatava o torço apertado que ainda parecia comprimir-lhe a cabeça, mesmo agora quando não havia mais risco de um fio de cabelo cair na comida? Vinho era, então, o purpúreo mar que inflama os sonhos? Era sangue sem cebola ardida? Vento invisível eriçando pelos? Dança que o padre Amaro jamais permitiria nas suas quermesses...
Sim, pára de caraminholas – grunhia a gasta voz ao pé do ouvido, invadindo a primeira festa de sua outra vida, destoando da profusão de sons que os ouvidos, aturdidos, mal conseguiam distinguir. Mas agora era tarde, e o mundo já girava vertiginosamente para Ana Rosa Nunes de Assis. Não havia mais tempo para o tremor e o corte. O sangue era vinho. O acre da cebola transformara-se num doce aroma de vida. Sonhos revoavam sob o teto trabalhado da casa de seu Alcides. No silêncio embriagado de cores, uma taça se erguia, solitária, a um brinde: “A ti bebo!” . E a menina que cortava cebola sorriu, agradecida...
Caraminholas são sonhos – hoje ela sabe. Sonhos que nada têm a ver com os bolinhos adocicados esturricando no peitoril da janela de sua infância, à espera de compradores. Se vendia dez era festa. Quando sobravam muitos, eram para o café ralo da manhã seguinte.
Faz tempo que não chove – pensa olhando pra o alto. Quando menina, via formas nas nuvens e piscava intrigada os olhinhos avermelhados de pouco dormir. Os céus ainda hoje desenham sonhos, se – sob a tinta avermelhada dos cabelos esticados de agora – ainda reencontra uma ponta da Aninha que sonhava sonhos ardidos de cebola. “Pára de caraminholas” – rasga o tempo a voz ácida de Aurora, a mãe. E em tempo de evitar cortes e respingos de sangue na panela amassada, lembra-se que agora é Ana Rosa Nunes de Assis, tem marido importante e usa tailleur vermelho em eventos bastante diferentes dos leilões de prendas dos tempos idos.
A primeira vez que bebeu vinho já tinha o primeiro filho, e a casa de seu Alcides e dona Lelinha – os anfitriões do seu primeiro importante evento – rodou todinha. Riu e, discreta, tirou os sapatos por debaixo da mesa comprida de vidro. Então vinho dava queimação? Vinho fazia rodar o mundo? Vinho desatava o torço apertado que ainda parecia comprimir-lhe a cabeça, mesmo agora quando não havia mais risco de um fio de cabelo cair na comida? Vinho era, então, o purpúreo mar que inflama os sonhos? Era sangue sem cebola ardida? Vento invisível eriçando pelos? Dança que o padre Amaro jamais permitiria nas suas quermesses...
Sim, pára de caraminholas – grunhia a gasta voz ao pé do ouvido, invadindo a primeira festa de sua outra vida, destoando da profusão de sons que os ouvidos, aturdidos, mal conseguiam distinguir. Mas agora era tarde, e o mundo já girava vertiginosamente para Ana Rosa Nunes de Assis. Não havia mais tempo para o tremor e o corte. O sangue era vinho. O acre da cebola transformara-se num doce aroma de vida. Sonhos revoavam sob o teto trabalhado da casa de seu Alcides. No silêncio embriagado de cores, uma taça se erguia, solitária, a um brinde: “A ti bebo!” . E a menina que cortava cebola sorriu, agradecida...
37 comentários:
Muito bom este texto.Parabéns.
O dia da cor é iniciativa de um blogue e todas as segundas-feiras
é uma cor diferente.
Obrigada pela visita ao meu
blogue.Beijinhos/Irene
Belíssimo texto Tânia... Uma descrição viva da roda gigante da vida. Uma mulher ainda menina da simplicidade de antes. Puro talento. Adorei!
Minha admiração!
Ah, Irene, que bom! Então, a cada segunda uma cor nova, ficarei atenta às segundas-feiras e às cores que vibram.
Obrigada pela vinda,
Beijos
Tânia
Oi Pablo, obrigada pela presença carinhosa. Admiração mútua, que já sou fã assídua do seu blog.
Beijos,
Tânia
Me fez lembrar (Embriagar-se), de Baudelaire...
Sempre agradáveis seus escritos
Olá, Juan, bem-vindo sempre, obrigada pela presença gentil.
Abraços
Obrigado pela visita e pelo carinho ;D
Segundo capitulo de coffee and cigarettes postado.
um beijo.
tava lendo o texto, aqui, e comecei a rir.
quando cheguei aos eua, ganhei a vida trabalhando na cozinha de um grande restaurante servíamos por volta de 3 mil pessoas por semana). no início eu lavava panelas, pratos, cortava vegetais, amainava mariscos, e descascava (muita!) cebola. sacos enormes, todos os dias.
lembro-me que havia acabado de tomar banho e fui ao barbeiro, logo no meu primeiro dia de folga.
mal me sentei na cadeira o português me perguntou se eu trabalhava em restaurante. respondi que sim. e ele:
- eu os conheço... pelo cheiro...
fiquei arrasado.
mais de 20 anos depois ainda acho que rescendo a cebola.
o aroma ficou aqui, além das retinas, além das pupilas...
ficou impregnado na alma, quero crer...
E este menino que já não é mais "isso" e nem "aquilo" também sorri, agradecido...
Sim, querida, o brinde que faço hoje é o por nós!
Pelo vinho e pelo pão da Vida!
Que, mesmo solitário, está e vai embriagado de outros sonhos, com outros aromas, outras cores, outros nomes, outros sons!...
Hoje, nó e que dizemos: "para de caraminholas"! pois agora já é tarde... já avançamos mar adentro: nesse púrpureo Mar que inflama e embala novos Sonhos embalados pela canção:
Navega coração, nas águas desse mar
Voa coração pra lá do arco-iris!
bjo.
Sam
Nossa, fui tocar na ferida do passado, inocentemente!!! rsrsr
Bem, mas no seu caso posso dizer que o acre da cebola transformou-se num doce aroma de letras, que emana e atravessa oceanos: olha que chique!!! rssr
Abração,
Tânia
Oi, Sam, bem-vindo!!!! Como poderia deixar de oferecer a doce embriaguez desse vinho da vida a esse amigo querido?
Sim, agora já é tarde e já avançamos mar adentro. Deixemos as cebolas a quem quer os olhos ardidos...
Beijo grande,
Tânia
tania,'
não tocou na ferida, não... rs
gosto deste cheiro de trabalho...rs
lembra da música de gonzaguinha?
"sem o seu trabalho/ um homem não tem honra"...
prometi ao meu pai que viveriua honradamente.
e eu me cumpro sempre...rs
ainda que um poeta acebolado... como um bife...rs
beijão procê.
Oi Tania...
Nossa, que lindo...já vi tantos desenhos em nuvens..e Deus!!quantos sonhos de menina...
Lindo teu texto, lindo teu espaço, grata surpresa a minha quando vi você ali enfeitando o meu quadrinhos que amigos queridos.
Obrigada!
Peguei uma cadeirinha vip aqui...
Bjo*
Cumpriu a sua promessa a seu pai com sobras de crédito. Disse pra ele que escreveria brilhantemente?
Beijo, poeta acebolado! rsr
Andrea, creio que será rico esse encontro. Gosto muito da forma como você escreve. Sinto intimidade com isso.
Também estarei assídua por aqui...
Beijos.
Tania
Belo conto. Dá água na boca ao lembrar-se de um vinho!
Passaria a noite inteira degustando cada gota de um vinho que nos leva a um sonho!
Daria para contemplar o Universo à Procura da Estrela Cadente.
Aqui é um belo lugar. Dá vontade de ficar. De tomar cada letra como se fora o vinho.
Grata, Machado, pela presença. Brindemos, então, ao vinho e ao sonho!
Beijos
"Os céus ainda hoje desenham sonhos".
Gostei, sinceramente!
É preciso é que não esqueçamos nunca de olhar esse céu.
Olá, Manuel, grata pela sua presença na Casa da Imaginação. Sim, olhar os céus sempre, há quem esqueça e perde tanto.
Abraços
púrpureo mar que inflama os sonhos, para mim bastaria o título mas tua narrativa tem muito mais, mais ventos a seguir. abraço
Acho tão bela a forma como você constrói essa subjetividade levemente embriagada de memórias e transitando entre dois presentes. Sei dessas sensações, a realidade se abre em senda onírica, a cabeça e os pés se tocam... Mas não é assim a única sensação totalizante que podemos ter de nossas vidas? Ao menos para os que bebem desse vinho.Doce.
Abraços.
Assis, obrigada pela presença, essa visita, por me acompanhar aqui na casa.
Grande abraço
Marquinho, teus comentários são sempre novos ventos poéticos soprando pra cá: adoro-os. Verdade, o tempo de abre em ontens, hojes e amanhãs, sempre. Nada estático.
Beijo grande,
Tânia
Tânia, que bonita a tua arte de juntar tanto num só texto, e fazê-lo de uma forma simples e bela.
Obrigado pelas palavras sobre o meu.
Um beijo
Beijão, Luis!
Eu de novo aqui (:
Pra falar mesma coisa hahaha!
postei os últimos 4 capítulos de coffee and cigarettes. Pra acabar com isso logo. u.u
ficou péssimo. Mas passa lá.
um beijo grande! E obrigado sempre, pelo carinho :)
Ainda me lembro dos tempos em que ficávamos esperando o carteiro trazer alguma novidade de um parente distante. Ou até mesmo daquelas cartinhas de amor, cujos endereços retirávamos das fotonovelas (das revistas InTerValos), etc.
O Correio não morreu, usamo-los – os selos - em nossos blogs. Mas existem outros lançados historicamente. Mesmo assim a ECT os substituiu pelas máquinas com carimbos automáticos. E as cartas? Somente contas a serem pagas! Para voltar aos velhos tempos, até hoje podemos usar selos de R$ 0,01 para carta social.
Olá, Tânia, bom dia.
Obrigada pelo seu comentário
no meu blogue.
Desejo que passe bem o dia.
Beijinhos/Irene
Ao olhar o seu e tecer caraminholas,se tecem sonhos de ontem......de hoje e de amanhã.
Oxalá nos permite,olhar sempre pro céu.
fiquei como sempre em encantamento.sua forma de escrever,recordando me traz a menina que ha em mim,bem pra perto.
afagos sentimentais (rs)
A Musa é o resumo de um Universo sem fim. A musa é obrigada a existir em nossa mente. Assim poderemos escrever, escrever, escrever...
Roxo Violeta são cores que fazem bem a nossa alma. Precisamos de cores para seguir o caminho.
Abraços, Machado, obrigada pela presença. Já escrevi também sobre o Muso aqui no espaço. Tá no arquivo.
Olá.
Como são bonitas as palavras que crescem aqui.
Cheias de sentidos
que nos enchem de sentidos.
Espaços assim se justificam pela ternura que inspiram.
Que a vida seja plena em ti.
Obrigada, Aluisio, pela presença, pela gentileza. Estive retribuindo a sua visita e o sigo.
Abraços,
Ai, tadinha! Só bebeu vinho quando já tinha um filho! Nem vou falar nada! rsrsrs Bjs
rsrsrs Beijos, Marcinha!
Tânia...
Um texto repleto de emoções, que toca no mais profundo da alma!
Um fragmento de vida, que tantas vezes se repete... e ignora!
Um beijo!
AL
Beijos e obriggada pela visita AL.
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