25 de agosto de 2012

(Dos sonhos VIII): "Fazer ressoar o verbo primitivo que está por trás das palavras”.



 
“”Venham para a beira.”
“Não podemos. Temos medo.”
“Venham para a beira.”
“Não podemos. Vamos cair!”
“Venham para a beira.”
E eles foram.
E ele os empurrou.
E eles voaram.
Venham.Vamos voar juntos.”

( Guillaume Apollinaire)



 
Um súbito clarão anunciou a ira divina, trovejada aos quatro cantos da terra. Eu precisava de um útero para me esconder de Deus. Precisava da concavidade sombria da rocha, do fogo nascido dos paus atritados, das danças e sacrifícios que abradam a fúria e devolve ao homem o silêncio e a Vida.

Era tudo tão antigo. Riscos nas cavernas tentavam registrar uma linguagem que resistisse ao tempo. O sexo e a carne fresca dos bichos eram o que abrandava a fome. Tudo era indício de que eu precisava voltar. Procurar o início, monstros desaparecidos que hoje dormem no ventre dos homens.

E o eu onírico avançava. Em vigília, porém, a outra que eu era banhava-se em perfume amadeirado e tentava traduzir o mundo apenas pelos livros. Versos com garras afiadas precipitavam-se, contudo, sobre o papel branco, até sangrá-lo. O que eu queria, não sabia dizer. E fui caminhando em busca de mim mesma.

O eu vígil enfrentou, concretamente, o grande desafio de subir o morro e rolar deitada num saco fechado. Veio o medo da altura. Dos céus. Da ascensão. Mas a voz da “mestra” explicou, paciente: “Olhe apenas o passo seguinte. Não olhe o alto do morro, apenas o próximo passo". E assim cheguei ao alto do morro e desci rolando, na escuridão, a ribanceira acidentada e endurecida.

A sensação foi indescritível. Eu me atirara a um destino misterioso sem o controle dos sentidos e desfrutava do prazer de ver meu corpo girando sem domínio, sem segurança, sem saber o que me aguardava lá embaixo.

À noite sonhei, então,  que dera à luz um menino índio, e que com ternura segurava-o nos braços, cravando meus olhos grandes nos seus pequeninos. Porque me atirara na escuridão do abismo, criei. Porque me entregara às profundezas sem medo, um novo rebento avivou minha alma e trouxe-me a consciência de que não é possível criar verdadeiramente sem mergulhar nas águas escuras e profundas do inconsciente.

Há abismos das alturas como o há das profundezas. Céus e infernos. Ambos são caminhos para a suprema integração. É preciso coragem, porém, para escolher o caminho sem fundo do abismo. É preciso acreditar numa outra orientação, que não passe pelos caminhos da razão. Atirar-se, sem enxergar, ao abismo é reanimar a criança aprisionada pelo medo, e, consequentemente, vislumbrar caminhos antes não vistos.

Um salto no escuro sensibiliza nossos sentidos ocultos e nos habilita a sermos os deuses criadores que somos. A Arte é filha da escuridão dos abismos aos quais nos atiramos. Criar é encarnar o Arcano Sem Número do Tarô, "O louco", que simboliza a criança, o vazio, a espontaneidade e a originalidade perdidas.

Nossos sonhos são, certamente, nossos guias mais fieis. Traduzem, simbolicamente, a linguagem das águas turvas das nossas origens. Mas a Arte é também, na maioria das vezes, um salto no escuro. Caminho para retratar o fundo do abismo. Muitas vezes, diante do papel em branco, fico pensando nas palavras do escritor alemão Gerhart Hauptmann: “Poetar quer dizer fazer ressoar o verbo primitivo que está por trás das palavras”. Cair no abismo e levantar inteiro, diria eu.

27 comentários:

poesiasmartinspescador disse...

Um poema muito lindo, que aponta reflexões em todo o entorno da vida. Parabéns mesmo!

Unknown disse...

é interessante essa ligação entre sonho e arte, ou quando se fundem na prática de um projeto o devaneio e a criação. tenho comigo que este abismo (abissal) é um constante cair, aquele ponto em que a vicissitude da vertigem é estar sempre no ar,


beijo

Zélia Guardiano disse...

Muito, muito lindo!
Que bom conseguir voltar e deparar com algo tão especial!
mil beijos, minha querida

na vinha do verso disse...

arte
na densidade das palavras

abs

silvia zappia disse...

que así sea



beijo*

Bípede Falante disse...

Tânia sabe sonhar...

Beijoss

Anônimo disse...

Jogo-me do abismo em cada poema, vivo a poesia até me esgotarem as forças. Mas na vida real, não faço ideia de como é isso. Não vejo ligação entre as duas coisas. Talvez quem viva intensamente não precise de poesia.

Beijo.

vieira calado disse...

O surrealismo volta sempre!
Saudações poéticas!

cirandeira disse...

Sonhos: sonhados, imaginários, imaginados, realizados,futuristas,
passados, presentes. Contar sonhos é uma forma de realizá-los, ou uma tentativa de copreendê-los. Descrevê-los literariamente é privilégio de poucos. E nesse sonhar acordada vais refinando a tua escritura, vais decifrando a tua "caixa de pandora"! Quantas surpresas ainda hão de surgir!?

beijoss

Luiza Maciel Nogueira disse...

tanta sabedoria, estou enebriada

beijo

Tatiana disse...

Eu pouco entendo da escuridão do abismo, mas amei "os versos de garras afiadas que se precipita sobre o papel branco, até sangrá-lo", é um sonho essa criação!
beijo

nilson disse...

É um tanto assustador alcançar a consciência das asas, do voar, do ultrapassar limítes reais ou imaginários. Tantos são os abismos de lá e de cá.

O bom da palavra vestida de poesia é esse voar, muitas vezes torto, mas que nos presenteia com a sensação de flutuar pela alma sempre inquieta.

Obrigado pela gentil visita.
Gostei da sua intimidade com as cores. Gostei do seu sentir.

Por quê "alívio"?

Um abraço!

nilson disse...

Seguirei então, em busca do abraço da esperança...

Domingos Barroso disse...

vejo uma sacerdotisa com os olhos
tão doces e tão assustados

por descobrir-se
a cada instante
...


Tânia,
beijo carinhoso.

Luiza Maciel Nogueira disse...

muito belo relato de tanta sabedoria, ando sonhando muito esses dias - e cada sonho [e mesmo uma descoberta - adoro isso de agigantar as coisas, que por infinitas tem tantas interpretações

beijos Tânia!

ediney santana disse...

"Um salto no escuro sensibiliza nossos sentidos ocultos e nos habilita a sermos os deuses criadores que somos."
nesta poesia de prosa também me encontro.

Primeira Pessoa disse...

taninha,
eu meio que conheço dos abismos de temê-los, como quem teme a morte.
pegando uma carona na observação de zé de assis quase me permito afirmar que a arte uma extenção do sonho. será?
sei não.
fico matutando, matutando...



Gustavo disse...

Quisera a todos ser possível fazer esta viagem. Na escuridão temos medo de nós mesmos... Estar sozinho conosco trás à tona lados ainda mais obscuros que toda essa escuridão do abismo... Sempre excelenteeee a sua lucidez, Tânia.. Estava com muita saudade de te ler!

Bjs!

Machado de Carlos disse...

A palavra se faz presente com letras do coração!
À beira de incríveis medos, que bom sentir uma pele sonhada!

Sônia Brandão disse...

É preciso se lançar ao inferno para poder crer nas asas e ascender ao céu. E você sabe disso.

bjs

Luciana Marinho disse...

tão bonito, tânia.
tão bonita a integração do homem e sua reverberação em raízes, abismos para o alto e para baixo, águas.

você já leu sobre alquimia?


abraço!!

Bípede Falante disse...

Tania!!
Acorda e vem escrever mais sonhos.
Beijoss

Tuca Zamagna disse...

Saudade de você, queridona. Muita!

Vim para avisar que o Teopha postou um poema dedicado a você e a outras quatro amigas queridas, e aí me deparo com essa crônica poética maravilhosa. Corri logo a folhear a Roxo atrás de suas jóias recentes. Achei tudo tão precioso que até te perdoo por ter nos deixado a ver návios naufragando lá no FB. Valeu muito a pena economizar o seu tempo para dedicar-se mais à escrita.

Beijão

P.S.: Agora vou procurar a minha lupa, para ler a epígrafe do Apollinaire...

AC disse...

Mergulhar assim, esquecendo o abismo, requer um enorme traquejo interior, muito choro e muito riso. Mas talvez seja o choro que determine a ascensão, a descoberta do mais ínfimo que nos povoa.
Pelo que leio tem percorrido um árduo caminho, Tânia, opção/obsessão pela descoberta da origem, sabendo do preço a pagar. E isso desperta em mim uma enorme consideração e admiração.
Que a harmonia espere por si no final!

Beijo :)

José Carlos Sant Anna disse...

Oi, Tânia,
estive aqui na Casa da Imaginação e lavrei um auto de leitura dos sonhos da moça cuja fala adoça por iluminadas falas roxas.
beijoss,

Heduardo Kiesse disse...

afinal a poesia tem endereço - a casa da imaginação!


obrigado por essa bela viagem em forma de verbo!


abraços

HK

Wilson Torres Nanini disse...

Encarmou o verbo e poetificou cada linha.

Abração!