19 de janeiro de 2012

Meu próprio sumo

Enquanto aguardamos a próxima entrevista, com o poetíssimo português Jorge Pimenta,  deixo no intervalo o meu próprio sumo...


Eu tinha medo de não compreender no fundo o que ele queria dizer. Verdade é que ele sempre me dizia algo estonteante, às vezes o absurdo que eu me recusava a acolher no meu ventre como semente, pra depois gerar um mundo inteiramente insólito, onde,  enfim, eu pudesse habitar.


Eu receava que a mensagem que ele tão cuidadosa ou elaboradamente quis passar não chegasse à minha alma tal qual foi concebida por ele. Isso foi até um dia, quando ele, por alguma razão, falou “árvore”, e lembrei da minha cabeleira indomável da infância, da minha letra enorme de recém-alfabetizada, garranchos que insistiam para que eu diminuísse  e alojasse, espremidos, entre duas linhas estreitas que nunca e nunca me caberiam. Ele falou de galhos estendendo-se ao vento e eu me lembrei das minhas primeiras expressões escritas, que queriam ser grandes como o céu, mas tornaram-se encolhidas, enquanto eu mesma diminuía de tamanho e arregalava os olhos para escutar o sentido daquele mundo ainda desconhecido.


Temia não poder traduzir a dor ou a alegria, talvez o anseio ou o espanto que ele transformou em versos – versos que eu amava, perguntando-me se era possível, mesmo, amar sem compreender...


Pois então, verdade é que acabou acontecendo de ele falar pau e eu entender pedra. De ele dizer “azul” e tudo, então, escurecer, sem vestígios de lua ou estrelas. Dei-me conta, finalmente, do quanto era importante eu extrair meu próprio sumo de quantas frutas ele me sugerisse provar. E eu nem precisava desculpar-me por me ver refletida, tal como podia, na imagem que ele me dava como retrato seu autografado, e já não me constrangia mais ver raios de sol inundando o chão e nem presenciar mulheres com torços brancos na cabeça, pele enrugada, a deitar latas velhas amarradas por cordas até o fundo do poço e de lá retirarem a luz que beberiam e matariam a sede naquele chão rachado pela seca.  


Um dia, então, ele escreveu: "Eu tenho sede...", era a fala de uma de suas personagens. E eu, confiante, completei:"...dai-me agora raios desse sol escaldante, porque essa luz e quentura haverão de aplacar a secura da minha alma"...

24 comentários:

Luiza Maciel Nogueira disse...

texto recheado de sabedoria, essa sabedoria de saber que cada um compreende um ínfimo do que a vida é, esse ínfimo infinito que nos percorre as veias. beijos

Joelma B. disse...

Há textos que nos leem...

beijinho com carinho, Tânia!

Celso Mendes disse...

Esse texto vai muito de encontro com o que penso da linguagem poética. Claro que autor normalmente tem uma intenção (embora nem sempre...). Mas o leitor não precisa obrigatoriamente entrar no sentimento do poeta para gostar de um poema. Para se gostar de um poema basta que o poema nos toque, que sintamos na pele as palavras, que nos venham imagens, sensações, emoções, interpretáveis ou não. Isso se torna muito claro, por exemplo, na poesia surrealista que marca vários autores contemporâneos. A palavra deve fazer gerar o espanto, deve se levar ao delíro, penetrar mentes. O entendimento, cada um faça o seu.


beijo, Tania!

ju rigoni disse...

Querida Tania, ainda que seja o mesmo vinho nas duas, ou muitas, taças, serão sempre diversos os paladares. É a vida!

Bjs e abraço apertado, poeta. Perdoe a demora (continuo enrolada). Bom fim de semana. Inté!

Domingos Barroso disse...

o chão tem outra textura quando tocado pelos próprios pés
...

Beijo carinhoso.

Maria Emilia Xavier disse...

Loucura, amiga.Adorei o texto, que me tocou profudamente ( aliás é difícil eu vir por aqui e não sair plena, repleta da palavra que instiga, que toca e remexe conceitos... pensares...), me preparei para comentar, mas o Celso, aqui acima, falou tudo que eu iria falar. Tá valendo, amiga, tudinho que ele colocou. Desculpa Celso te clonar.

Unknown disse...

TÂNIA!

Um texto tão lindamente escrito que toca no fundo da alma, Faz-se sumo e junta-se ao seu. A primeira vez que li achei que era do Marcelo, mas relendo, vi você nas entrelinhas, fluindo e extasiando.

Parabéns!]


Beijos

Mirze

Unknown disse...

quando ouço a palavra sumo penso logo em coisas ácidas, mas que das quais sempre se pode extrair a essência, talvez seja isso a existência: a sede infinita à beira de rio,



beijo

Anônimo disse...

enquanto esperamos, lemos deliciados o teu texto, a tua poesia

beijinho
LauraAlberto

Anônimo disse...

sem medo, tudo corre

fico à espera da entrevista do Português

Beijinho
LauraAlberto

Andrea de Godoy Neto disse...

é desses textos que nos deliciam por saber-lo tão poético e tão verdade...

o gosto que se faz na nossa boca, só nós mesmos conhecemos...
(assim como as dores da nossa alma)


beijo grande, Tânia!
saudades

cirandeira disse...

Tânia, postei um comentário lá no
'mínimo' há vários dias sobre esse texto.
Reitero aqui um pouco do que disse lá: teu sumo tem vários sabores
sabores e significados de cuja árvore sempre brotarão muitos frutos poéticos!

um beijo

lula eurico disse...

Um sumo tão saborosamente poético deve ser mais vezes compartilhado, poetamiga.

Abç fra/teno.

dade amorim disse...

Textos como esse trazem um sumo da verdade que todos nós conhecemos, Tânia. Lindo e verdadeiro.
Beijo beijo.

Batom e poesias disse...

A estrada que percorre a palavra é longa e cheia de equívocos, mas a mensagem essencial sempre chega em casa.

Texto belíssimo, Tania.
Devia nos presentear mais vezes.

Bj♥s

Rossana

Ira Buscacio disse...

Olá, Tânia, to me sentindo em casa, aqui encontrei coisas que gosto muito, os amigos (tantos em comum, que nem sei como não vim parar aqui antes), a poesia (a tua, um espanto), sensibilidade, autores maravilhosos (que a gente pode conhecer melhor). Tudo isso através do meu bom amigo Jorgito, se não fosse pelo enorme carinho e respeito que tenho por ele, pela sua obra, esse (conhecer teu espaço) seria um bom motivo pra presenteá-lo com uma poesia.
Bom estar aqui, bjocas

aeronauta disse...

Passando para agradecer sua visita e dizer que seu blog é muito bonito, casa boa de entrar! Abraços.

Zélia Guardiano disse...

Muito lindo o teu sumo, Taninha!
Lindo demais!
Palavras tão bem aplicadas, perfazendo trama , urdidura, de forma perfeita!
Sabe que acabei voltando à minha remota infância? Lembrei desenhos, escritos, recitativos... Tanta coisa, querida!
Grata!!!
Beijos carinhosos

Jorge Pimenta disse...

é admirável a profusão de vozes que aqui incitas a entrar, querida amiga, mas a tua, a tua, taninha, a tua foi a que pela primeira vez a muitos fez aqui aportar.
levo esta frase comigo: "Verdade é que ele sempre me dizia algo estonteante, às vezes o absurdo que eu me recusava a acolher no meu ventre como semente, pra depois gerar um mundo inteiramente insólito, onde, enfim, eu pudesse habitar."
afinal, todas as explosões nos rasgam de dentro para fora.

Fred Caju disse...

Já estava rolando uma saudade de ver algo só seu por aqui.

silvia zappia disse...

delicioso, poético relato

besos*

Claudinha Antunes BA disse...

Ai, ai, Taninha...
Até hoje não cabemos entre 2 linhas...rs... Que assim seja!
Beijos com carinho

AC disse...

Às vezes o nosso sumo escorre-nos pelas mãos e nem o sentimos, outras vezes o seu leve deslizar envolve-nos por inteiro...

Beijo :)

Anônimo disse...

Sumo é algo que precisa ser extraído, não verte sem um certo sofrimento da fruta. O sumo que combate a secura da alma talvez seja mesmo semelhante ao raio de sol que provoca a sede do corpo. Como se não fosse possível a saciedade de um sem o apetite do outro.
Ih! Compliquei o amor, Tânia.
Bjs