9 de março de 2011

A carícia do sol na face da noite



O ascendente é Peixes, Netuno está bem em cima do meu sol, a bioenergética define-me como esquizóide e sei lá quantas outras explicações já vieram socorrer essa necessidade vital de ter, em alguma hora do dia, que parar e...sonhar! Sonho, delírio, arrebatamento, deem o nome que derem àquela horazinha do dia em que é preciso mergulhar em minúcias insignificantes, absolutamente dispensáveis aos sujeitos pragmáticos.
Um dia qualquer cismei em encontrar o instante exato em que o dia desaparecia para dar lugar à noite. Sim, porque a coisa vai acontecendo lentamente, o sol vai desaparecendo aos poucos, a tonalidade dos céus vai se alterando, ruídos de insetos começam a anunciar a chegada da noite...mas haveria de existir, claro, o instante em que dia e noite se encontravam e se tocavam rapidamente, numa despedida breve e imperceptível aos nossos sentidos não apurados.
Abri a janela e determinei-me a encontrar esse instante fugidio que não fosse nem dia nem noite, ou que fossem ambos, fundidos, luz e treva olhando-se frente a frente, um desvanecendo-se outro imprimindo sua marca sobre uma parte da terra. E assim me deixei ficar, atenta, esperando a revelação do minuto exato desse encontro veloz que meus olhos nunca viram.
Inadvertidamente, em alguns momentos a atenção desviava-se para o reflexo do meu próprio rosto no vidro da janela, inteiramente aberta. Sim, já não era o mesmo rosto de alguns anos atrás, a candura do olhar cedera espaço a uma espécie de malícia recém-descoberta e ainda sem ter encontrado pra si uma utilidade. Num dia qualquer, que agora me parecera tão distante, havia um rosto de menina espantada que me olhava no espelho e me perguntava sobre os primeiros mistérios da vida. Não, mas agora ele já não estava lá. A mulher que me olhava do reflexo da janela já encontrara um sem-número de respostas e avançara demasiado nos caminhos virgens de outrora. Envelheci. Mas...quando exatamente? Sim, porque a coisa vai acontecendo lentamente, como um sol que vai desaparecendo aos poucos, enquanto a noite chega sorrateira, pisadas leves, voz inaudível. Haveria de existir, claro, um instante, em que a menina e a mulher se encontravam e se tocavam rapidamente, numa despedida breve e imperceptível aos meus sentidos não apurados.
Perdida nos pensamentos, lembrei-me, então, de voltar a olhar o céu e a paisagem do lado de fora da janela, onde procurava encontrar o momento mágico do enlace entre dia e noite. Já era tarde, contudo. As árvores verdes transformaram-se numa grande e indivisível sombra. Um ponto brilhante nos céus anunciava a chegada da noite. Nenhum vestígio de luz, nenhum azul esmaecido, uma meia-lua sorrindo zombeteira pra mim. Perdi o momento em que o último raio de sol acariciou a face da noite em despedida. E me lembrei da voz da minha avó, numa infância encoberta por densas névoas, a me dizer: “Mistérios são mistérios, menina, a gente não tem como saber”....

47 comentários:

Maria Emilia Xavier disse...

Belíssimo texto.Penso muito nesses momentos quando o que era se transmuta em outra ou outras coisas e, nunca consigo saber, ver, ouvir... Como diz sua avó mistérios...

Primeira Pessoa disse...

os mistérios são mistérios e a gente não os sabe.
nunca.

beijão,
r.

Unknown disse...

Queríamos nós saber dos mistérios da vida, quem sabe um dia enxerguemos isso lá pra frente, aí seria os mistérios do passado.
Abraço

Silenciosamente ouvindo... disse...

A sua avó tinha imensa razão.
Excelente post.
Um beijinho
Irene

Machado de Carlos disse...

Belíssimo o seu texto. Lindo! Delícia de ser Lido!
Não definimos muito bem quando chega à noite ou quando chega o dia. Ainda bem que temos esta consciência, pois a noite deveria começar quando o Sol se põe. E o dia anuncia sua presença quando o Sol rompe a aurora com os seus brilhantes raios. E ela estava ali. Então me perdi entre os Sóis e as Luas!
Grande Abraço Amiga,
Beijos!...

Bípede Falante disse...

É. A infância é um mistério tão grande quanto a própria vida. Ela se realiza e se apaga, divide as lembranças, desbota as verdades e colore os mistérios. Gosto tanto de vir aqui ler esse roxo violeta :)
beijo

Unknown disse...

tem um instante que a gente desperta e se pergunta: como eu cheguei até aqui e o espelho não responde,

beijo

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

"sei lá quantas outras explicações já vieram socorrer essa necessidade vital de ter, em alguma hora do dia, que parar e...sonhar"
e assim vamos em tantas explicações que às vezes me pergunto o que temos de nós nessas buscas todas?

Unknown disse...

As avós não erram em sua sabedoria!

Quantos mistérios há, para desvendar!!!

Belo texto!


Beijos

Mirze

Tuca Zamagna disse...

Maravilha, Tania. Você entrelaçou, com a precisão do mistério, esses dois momentos imprecisos: o anoitecer do dia e o de nós mesmos.

Me lembrei de um grande amigo e poeta que já se foi e que era fascinado pelos "gêmeos" (definição dele) amanhecer e anoitecer. Foi inspirado nele que Aldir Blanc fez a letra da música de João Bosco que começa assim:

"Eu gosto quando amanhece/ Porque parece que está anoitecendo/ E gosto quando anoitece, que só vendo/ Porque penso que alvorece"

Beijo

dade amorim disse...

É assim quando resolvemos desmanchar um mistério - e eles são tantos que nem é bom insistir.
Também lembrei da música de Aldir Blanc e joão Bosco, uma de minhas duplas prediletas na MPB.
Beijo grande.

Jorge Pimenta disse...

ah, malfadados espelhos que não se bastam com as suas próprias rugas. e a noite há-de ser sempre noite e o dia o dia; o que muda é o olhar que os divisa, avalia e [re]define. sejam os olhos o próprio vidro reflector.
um beijinho, taninha!

Márcia Luz disse...

Lindíssimo o texto! Bem ao meu gosto! Fiquei emocionada.

Ah! Obrigada pela visita ao meu blog.

Beijos.

silvia zappia disse...

aplaudo este delicioso relato y confieso haber intentado ver el exacto momento en que empieza el día.(no develé el misterio...serán cosas de piscis?)


beijo*

Anônimo disse...

Tânia: Interessante este teu texto, mas os mistérios são mesmo mistérios que não são faceis de desvendar, por isso mesmo se chama mistério, uma coisa dificil de entender.
<Beijos
Santa Cruz

lula eurico disse...

Uma delicadeza de texto... detalhes só perceptíveis e explorados por que se banha de poesia.
Salve este dia que anoitece e todos os dias da poesia que ainda hão de alvorecer.

E um abraço fra/terno.

Bípede Falante disse...

Tania, você é que faz e é poesia. Esse dia é seu! :)
beijos

Sônia Brandão disse...

Nesses mistérios é que está a graça da vida.
bjs

ju rigoni disse...

Adorei ler esse texto, Tania! O mistério é a magia que mantem vivo o defunto, o assunto das entrelinhas...

Obrigada, querida, pelas palavras que deixaste por lá. A recíproca é verdadeira. Abuso, e deixo aqui uns versinhos pra gente continuar comemorando:

Alimentamo-nos
em seios fartos,
deleite
nunca morno...

Morre o corpo
vive a alma
nutrida
do que não morre...
Sussurro ou grito,
nú em pelo
o espanto, -
fumaça de gelo
e fogo...

Não há fim
nesse princípio...
Só há vida.
Vida!...

Bjs, poeta. Viva a poesia! Quando não salva, alivia. Inté, querida!

Machado de Carlos disse...

Que bom ler você. Seus textos, ricos nos fazem aprender. Escreva sempre... Sempre...

Para comemorar o dia dos Poetas:

“Uma simples flor, mas carregada de perfume. Um perfume que nos faz sonhar. Os sonhos mais perfeitos, pois são coloridos.
Os galhos de ciprestes dançam ao vento, seguindo a melodia do amor”.

Beijos

Luiza Maciel Nogueira disse...

tu um ser que abriga luz (beleza, mistérios, amor) :)

beijos

Tuca Zamagna disse...

Me referi aqui a um meu falecido amigo poeta e citei o início de uma letra do Aldir Blanc em homenagem a ele. Mas omiti a continuação da estrofe que, além de bela, tem tudo a ver também com a sua crônica. O poeta veio me puxar a orelha essa noite, então tratei de vir aqui bem cedo (9 horas, pra mim, é madrugada) fazer o acréscimo:

"E então parece que eu pude/ Mais uma vez, outra noite/ Reviver a juventude/ Todo boêmio é feliz/Porque quanto mais triste/ Mais se ilude."

Beijo, Tania!

Jorge Pimenta disse...

taninha,
um aceno de aquém-mar para alguém que torna a poesia na arte mais partilhável do ser humano, neste dia tão simbolicamente importante.
um abraço, poeta querida!

silvia zappia disse...

gracias por tu saludo
yo también te saludo
que viva la poesía!

besos*

Moisés Augusto Gonçalves disse...

Sempre me encanto com esta "casa da imaginação"...!
Tudo de bom!

Manuella Epaminondas disse...

seu texto tá um mimo só :D
adorei, lindo blog
http://manunatureza.blogspot.com/

Tuca Zamagna disse...

Tô no FB sim, Tania. Põe na busca Zamagna e veja a foto, que é a mesma daqui. Tentei te adicionar, mas não achei pelo nome completo, e Tania Contreras tem mais que Zé da Silva!

Beijo

Emilene Lopes disse...

Um texto tão lindo que chega a ser palpável...
Bjsss

Mila

Graça Pereira disse...

Fico deliciada - talvez como a noite ao receber a última carícia do sol - quando encontro textos como este!
O prazer da leitura... sem mistérios!
Curiosamente fiquei a pensar qual teria sido o momento exacto da minha transformação de menina em mulher...já vai longe e não consigo descortinar mas, ficarei atenta quando o outono da vida se instalar ou terei de chegar à conclusão da tua sábia avó: mistérios são mistérios e não há nada a fazer!
Beijo
Graça

A.S. disse...

Eis um texto verdadeiramente fascinante!!!


Beijo,
AL

Unknown disse...

Taninha querida, que blog lindo! Que sensibilidade!! Muito roxovioleta, pura poesia! Estou lhe seguindo :-) Beijos com meu carinho

Unknown disse...

Existe um artista que durante a sua existência dedicou sua obra na descoberta desse instante.
Esse exato instante do toque entre a noite e o dia. Chama-se Renê Magritte que viveu casado e feliz por muitos e muitos anos com Georgete. A mulher que dava todo conforto para a sua criação e cuidava de reinventar a vida para ele. Estou certo de que você revendo a sua obra, encontrará muitas respostas e pontos de contato. Beijos.

Zélia Guardiano disse...

Texto encantador, Tania!
Encantador!
A sua sensibilidade e o seu talento revelam-se por inteiro neste escrito...
Abraço apertado da
Zélia

Machado de Carlos disse...

A Lua Canta alto aos corações sonhadores. Sentimos na pele os raios lunares!

Beijos!...

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) disse...

Tania,
Texto acariciante, pra se reler em arrepios. Um segredo de sonho cada palavra. Já o título um esplendor, e vó invocada ao final eterniza ternamente...
Obrigado, qualquer dia abrirei minha janela assim também...

Abraço noite-dia,
Pedro Ramúcio.

Cadinho RoCo disse...

Sem mistério a vida perde a graça.
Cadinho RoCo

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

se vc não postar outro texto imediatamente vou chamar o Procom para prender vc por causar dependência e depois desaparecer...

Fred Caju disse...

Belíssimo! Mas confesso a primeira frase me remeteu imediatamente a um poeta da minha terra:

Fique peixe,
que a era é de aquários.


Valmir Jordão.

F@bio Roch@ disse...

Amiga, seu texto, perfeito!!

Não tenho medo!! E vc, tem?... novo é novo, não do tipo, tudo de novo, mas novo de tudo.

Ei, tenho um presente p/ vc na minha página, na verdade, é um desafio, confere lá!

Abraço

Emília disse...

Não são os mistérios que dão graça à vida?
Que enfadonha seria a vida sem questionamentos!

Um abraço

Wilden Barreiro disse...

minha dificuldade com essas fronteiras é insuperável. se tento precisá-las, elas me atropelam sem dó nem piedade. quando tento tocar o focinho da manhã, já é tarde. então tento segurar a tarde pelo rabo, mas aí a noite já me raptou, rumo à madrugada.

sou tosco, avessado. se fosse um rio, nasceria na foz.

Celso Mendes disse...

Tantos mistérios atravessamos neste nosso viver... Gostei muito do texto. Leitura que me prendeu e fluiu fácil...

abraços!

Carla Diacov disse...

É roxo o amor, de amoras não, de dor. – disse a Délinha Prado e eu me lembrei do teu tom.

Beijinhos!

Simone Reis disse...

Boa tarde Tania
Mistério: tudo que tem causa oculta, desconhecida ou é incompreensível, inexplicável; enigma. E assim vamos levando a vida, sem conseguir entender certas coisas que acontecem na nossa passagem aqui na Terra.
Na oportunidade agradeço o comentário sobre o aniversário de Salvador, no blog do Lu Cidreira e infelizmente temos que concordar com o foi dito. Lamentável.
Grande abraço.

Sandra Cristina de Carvalho disse...

Oi,Tânia

Entrei sem bater. Deixei lá fora meus dissabores existenciais, a fim de difundir-me por entre esta atmosfera tão poética!
Quanto lirismo, que me sugere emoções indecifráveis...
A beleza do seu texto me comove e me remete aos meus pròprios mistérios. Afinal, quem não os busca? Compreendê-los denotaria estarmos prontos, não?
Saio agora, mas pedindo permissão para voltar a sentir esta áura cheia de luz violeta e tão sublime.
Felicidades!

SANDRA CRISTINA

Anônimo disse...

Tania...
para mim, a hora mais triste do dia é o pôr do sol. Me gera melancolia, que vem da palavra melanina, aquele líquido escuro e denso que a vesícula produz. Os gregos sabiam....

Então esse contraponto entre esse nosso ocaso, esse nosso outono, esse envelhecer que não sabemos bem nem onde, nem COMO...nem nada enfim, tem tudo a ver com o poente.

É Tânia, não é um momento fácil não. Mas passá-lo com coragem, assumiondo alguns "mistérios"com fé, deve ser uma superação, a tal da maturidade.

Bom, tô falando por falar né, conceitos...intelecto, pq querida, estou nessa luta.

bom, só rindo e agradecendo mesmo

PVB:realit
trad: vamos nessa, é nóix!

Kelly disse...

Descobri o Roxo Violeta lá no Umbigo do Sonho... e adorei! Que coisas belas você escreve! Posso ser sua seguidora também?
Um abraço,
Kelly