Ele existia – isso já dava a ela o sentido da vida. Não que o visse, que soubesse de uma eventual alegria ou qualquer tristeza que lhe tivesse chegado à alma inesperadamente – não, não sabia! Mas a ela bastava imaginar que, numa rua de calçamento irregular, com um único Ipê roxo que talvez tenha permanecido de pé, ele caminhava, enigmático, em sua direção. As gastas botinas pretas certamente ainda arranhavam o chão, desafinadas.
Um dia pensou em mandar-lhe uma carta, das tantas que escreveu madrugada adentro, mas desistiu para não parecer antiga. Desistiu por temer também que as palavras envelhecessem durante o percurso e chegassem sem a força daquele amor renovado a cada dia, mesmo a distância.
Nos raros momentos em que a alegria lhe visitava, gostava de dizer que sim, tinha um amor que morava do outro lado do oceano e que sofria secretamente pela vasta extensão de águas que os separava. Logo em seguida, ficava triste por lembrar que a vasta extensão de águas que se interpunha entre os dois não passava de uma fantasia e que talvez fosse uma estrada apenas o caminho a vencer para que enfim estivessem juntos novamente.
Muitos anos antes de conhecê-lo, pressentia que ele viria do mar. Como não havia, então, nenhuma espécie de água na sua cidade feita de pedras, sonhava em ganhar o mundo, fazer morada numa cidade grande, cercada de água por todos os lados. Quando comentou isso com Ernesto, o único vivente capaz de entender seus anseios naquele fim de mundo, ele explicou que seu mar era apenas uma metáfora – e lá se foi ele ensinar que metáfora era qualquer coisa como uma semelhança indireta, um sentido figurado, e ela pouco pôde entender, então, da explicação.
Fosse como fosse, Ernesto era a única pessoa que podia compreender os sentimentos estranhos que lhe acorriam à alma. Foi a ele que contou, um dia, na véspera da Festa da Primavera, que se sentia duas pessoas: uma que estava presa ao corpo e ao pouco espaço que a cidade de pedra oferecia, outra que já ostentava as primeiras rugas e jazia cansada de vagar pelas estradas desertas de uma vida que de fato nem vivera. Também foi a Ernesto que mostrou o seu primeiro escrito, inspirado em uma foto antiga apanhada no baú de sua tia. Uma carta de amor! – dissera-lhe ele em júbilo!
Passaram-se anos e muitas cartas de amor foram escritas a um remetente imaginário. Dia após dia o montinho de missivas crescia, sem que houvesse um endereço real para onde pudesse enviá-las. Ainda assim, o coração batia acelerado a cada vez que o homem dos correios tocava a campainha de sua casa, como se viesse trazer-lhe as respostas para as cartas que nunca saíram da gaveta da velha escrivaninha sanfonada.
Foi num sábado de outono que viu pela primeira vez o homem de botinas pretas. Pela fresta da janela do quarto, percebeu que ele procurava conferir o número desenhado em giz na parede externa da casa. Tinha olhos tristes e apertados aquele homem cuja fisionomia parecia-lhe familiar. Num ímpeto que nunca soube explicar, deu a volta pelo corredor externo que dava acesso ao jardim, e num minuto estava prostrada à frente do desconhecido.
O que conversaram por mais de meia hora, nunca contou a ninguém. Também não falou a Ernesto de que forma puderam ver-se – ela e o forasteiro – por mais alguns meses, enquanto ele resolvia o que viera fazer naquela cidade de pedras. E da mesma forma que chegou, o homem se foi um dia. Tanto tempo se passou depois disso. Tantas histórias viveu nos anos que se sucederam ao primeiro encontro. Algumas rugas e um cansaço precoce também chegaram à sua vida. Outros homens conhecera, de poucos amores sofrera, mas nenhuma carta foi escrita a outra pessoa que não ele.
Por muito tempo ainda escreveu cartas. Junto a algumas, colocava flores secas do ipê roxo. Com o passar dos dias, as cartas foram rareando, porque a época era outra, porque já havia aprendido que cartas de amor são ridículas, porque o endereço que o homem lhe deixara perdeu-se no emaranhado de papéis que aprendeu a acumular.
Às vezes ainda ficava alegre e imaginava-se vencendo um mar agora mais extenso. Sim, ele existia – e isso já dava a ela o sentido da vida. Um dia ensaiou escrever-lhe algo que nunca lhe tinha dito ao longo da vida, mas não encontrava nada com viço. Foi quando leu nas cartas de amor de Gibran – um dos autores que lhe foram apresentados por Ernesto há tanto tempo – uma frase que copiou e com a qual iniciaria, então, a sua última carta:
“Existe emoção maior do que ver os elementos produzindo força e energia selvagem? Vamos para os campos, buscar o inesperado”...
E morreu antes que pudesse juntar à carta a flor roxa e seca do último ipê que permaneceu de pé.
Um dia pensou em mandar-lhe uma carta, das tantas que escreveu madrugada adentro, mas desistiu para não parecer antiga. Desistiu por temer também que as palavras envelhecessem durante o percurso e chegassem sem a força daquele amor renovado a cada dia, mesmo a distância.
Nos raros momentos em que a alegria lhe visitava, gostava de dizer que sim, tinha um amor que morava do outro lado do oceano e que sofria secretamente pela vasta extensão de águas que os separava. Logo em seguida, ficava triste por lembrar que a vasta extensão de águas que se interpunha entre os dois não passava de uma fantasia e que talvez fosse uma estrada apenas o caminho a vencer para que enfim estivessem juntos novamente.
Muitos anos antes de conhecê-lo, pressentia que ele viria do mar. Como não havia, então, nenhuma espécie de água na sua cidade feita de pedras, sonhava em ganhar o mundo, fazer morada numa cidade grande, cercada de água por todos os lados. Quando comentou isso com Ernesto, o único vivente capaz de entender seus anseios naquele fim de mundo, ele explicou que seu mar era apenas uma metáfora – e lá se foi ele ensinar que metáfora era qualquer coisa como uma semelhança indireta, um sentido figurado, e ela pouco pôde entender, então, da explicação.
Fosse como fosse, Ernesto era a única pessoa que podia compreender os sentimentos estranhos que lhe acorriam à alma. Foi a ele que contou, um dia, na véspera da Festa da Primavera, que se sentia duas pessoas: uma que estava presa ao corpo e ao pouco espaço que a cidade de pedra oferecia, outra que já ostentava as primeiras rugas e jazia cansada de vagar pelas estradas desertas de uma vida que de fato nem vivera. Também foi a Ernesto que mostrou o seu primeiro escrito, inspirado em uma foto antiga apanhada no baú de sua tia. Uma carta de amor! – dissera-lhe ele em júbilo!
Passaram-se anos e muitas cartas de amor foram escritas a um remetente imaginário. Dia após dia o montinho de missivas crescia, sem que houvesse um endereço real para onde pudesse enviá-las. Ainda assim, o coração batia acelerado a cada vez que o homem dos correios tocava a campainha de sua casa, como se viesse trazer-lhe as respostas para as cartas que nunca saíram da gaveta da velha escrivaninha sanfonada.
Foi num sábado de outono que viu pela primeira vez o homem de botinas pretas. Pela fresta da janela do quarto, percebeu que ele procurava conferir o número desenhado em giz na parede externa da casa. Tinha olhos tristes e apertados aquele homem cuja fisionomia parecia-lhe familiar. Num ímpeto que nunca soube explicar, deu a volta pelo corredor externo que dava acesso ao jardim, e num minuto estava prostrada à frente do desconhecido.
O que conversaram por mais de meia hora, nunca contou a ninguém. Também não falou a Ernesto de que forma puderam ver-se – ela e o forasteiro – por mais alguns meses, enquanto ele resolvia o que viera fazer naquela cidade de pedras. E da mesma forma que chegou, o homem se foi um dia. Tanto tempo se passou depois disso. Tantas histórias viveu nos anos que se sucederam ao primeiro encontro. Algumas rugas e um cansaço precoce também chegaram à sua vida. Outros homens conhecera, de poucos amores sofrera, mas nenhuma carta foi escrita a outra pessoa que não ele.
Por muito tempo ainda escreveu cartas. Junto a algumas, colocava flores secas do ipê roxo. Com o passar dos dias, as cartas foram rareando, porque a época era outra, porque já havia aprendido que cartas de amor são ridículas, porque o endereço que o homem lhe deixara perdeu-se no emaranhado de papéis que aprendeu a acumular.
Às vezes ainda ficava alegre e imaginava-se vencendo um mar agora mais extenso. Sim, ele existia – e isso já dava a ela o sentido da vida. Um dia ensaiou escrever-lhe algo que nunca lhe tinha dito ao longo da vida, mas não encontrava nada com viço. Foi quando leu nas cartas de amor de Gibran – um dos autores que lhe foram apresentados por Ernesto há tanto tempo – uma frase que copiou e com a qual iniciaria, então, a sua última carta:
“Existe emoção maior do que ver os elementos produzindo força e energia selvagem? Vamos para os campos, buscar o inesperado”...
E morreu antes que pudesse juntar à carta a flor roxa e seca do último ipê que permaneceu de pé.
28 comentários:
Esta narrativa, muito bem escrita, gerou em mim uma emoção. Já pensou escrever muitas cartas e jamais serem entregues.
Lembra-me de um autor que escreve, escreve... suas obras são publicadas e ficam perdidas no tempo. É como se escrevêssemos algo para a posteridade. Um dia morremos e a obra ficou.
Tania, impossível ler sem derramar lágrimas...
E um dia eu duvidei que pudesse existir amor assim.
Divino, parabéns!
Beijos meus.
Tania, contista, esse texto vai além da digitação e nos traz a caligrafia silenciosa de um amor que não recebe respostas porque se esquece de fazer perguntas, um amor sem o reflexo da própria imagem. Um conto especial.
vamos para os campos, buscar o inesperado
já o título é contagiante e a narrativa se enrosca em nós fazendo espirais, soprando reminiscências e embalando de seda as palavras,
beijo
Ótimo texto, Tania.
Beijos
O texto acabou me emocionando, Tania. Além de bem escrito, a história vai numa cadência, fluente e envolvente. Fiquei até sem palavras. Gostei imensamente.
Tânia, eu pude ver "as palavras envelhecendo durante o percurso", catá-las entre seus ipês, envelhecer delas.
Lindo. Me derreti sobre a prosa.
Abraço!
Carolina.
O amor é assim
quando se inscreve
à vista dos jacarandás
Impossível ficar indiferente diante deste texto...
belo
O Ipê roxo, bem como o Ipê branco é incrível! Pena que eles floreiam uma vez ao ano. Toda primavera!
Um grande Abraço!
Beijos!...
prosa em conto, muito bem sentida, haverá mais?
abraço
O bom de um texto como esse é que ele foi escrito por outra pessoa, mas passa a ser nosso, assim que o lemos.
Lindo, Tânia.
Beijo e bom fim de semana.
Belo, comovente!
Sabes como aprecio ler seus escritos. Bom que esteja de retorno.
Bjs, linda, e inté!
Fui ficando triste...e pensando que as vezes,nos prendemos a sonhos,imaginando mil possibilidades,criando um amor,ou uma vida que normalmente não existe,e a vida acaba ficando cheia de folhas secas,cartas amarelecidas e um coração amargo.
Será que vale a pena?
Não sei ,não sei.
O que sinto é q é preciso se agarrar a realidades construidas e viver todos os momentos bons,sem saudosismos.
Fazia tempo que não lia uma narrativa tão intensa e tão triste.
Você tem uma capacidade de me envolver em seus escritos que as vezes nem acredito.
Adoro vir aqui.
afagos de bem querer
Linda a matéria postada!
Em minha rua onde moro, no Rio, em toda a sua extensão, foram plantados pés de Ipês roxo. Na época da florda, a rua fica coberta de flores... Lindo espetáculo da Natureza e, de quem teve essa magnífica idéia.
Lindo seu blog
Um ótimo fim de semana
Marcio RJ
Tânia, que coisa linda, é como se em cada palavras já estivesse anunciado o fim, e a gente continua a ler, com a indisfraçável esperança de que ela tivesse podido, realmente, ter vivido a vida.
PV: impasi
TRAD: precisa?
Querida Tânia, resolvi passar por cá hoje para ver se já estava de volta, e fui presenteada com este belíssimo texto: contagiantes e emocionantes palavras.
Um grande beijo.
Cleópatra.
Tânia,
Seja bem-vinda. Sua presença sempre é uma grande alegria.
Que bom que você voltou!
Seu blog está sempre maravilhado e cheio de luz.
É um grande prazer visitá-la!
Um grande Abraço!
Quanto talento, Tania. Quanto talento!!
Aplausos de pé!
Beijos!
Bonito demais o seu conto, Tania!
Gostei imensamente.
Quando da conversa com Ernesto, a respeito de metáfora, fui levada até Neruda e o carteiro...
Emocionei-me com a história!
Grande abraço
P.S. Fiquei muito feliz com sua visita...
Obrigada!
que lindo, tânia...
que lindo...
depois quero te mandar ypê, uma cantiga de belchior.
linda.
beijão,
r.
Uma presença constante que engrandece a nossa alma e nos ensina a transferir para o papel nossas emoções.
Lindíssimo, Tânia. Salta aqui o carinho com que você construiu essa lindeza.
O amor não pode esperar. Que nos fique a lição.
Beijo pra você
Quantas vezes vivemos, sonhamos, escrevemos em silencio um amor que nem sempre encontramos
beijinhos
passei, reli, gosto tanto...
bj grande!
vc está bem?
tânia, dizia, lá no viagens de luz e sombra, que já nos cruzámos por aí, algures nos blogues da "turma". fico contente por nos termos encontrado nos nossos próprios espaços.
a sensibilidade no que escreves é uma imagem de marca que vinha já pressentindo nos comentários que foste aspergindo pelos blogues que ambos visitamos.
um beijo!
Muito lindo seu texto, muito bom ler você.Parabéns e tudo de bom pra você.
Fui lendo, lendo e me fiquei em "Pela fresta da janela do quarto, percebeu que ele procurava conferir o número desenhado em giz na parede externa da casa"
isso é um mineconto dentro da tua prosa leve
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