8 de abril de 2010

Já sei a eternidade: é puro orgasmo!



















Escrevo porque eu toda inteira sempre fui uma indagação sem respostas.
Mas antes que alguém reclame a ausência de aspas na frase acima, esclareço que peguei emprestado o desabafo de Clarice Lispector e resolvi abrir com ele o meu post de hoje. Bem que a minha intenção era falar sobre qualquer coisa assim existencialista, mas já estou eu aqui lembrando das tantas frases literárias que já li em minha vida e que gostaria de ter dito, do muito que traduziram a minha alma. Já aconteceu, inclusive, de eu muitas vezes decorar uma ou outra, para dizê-las em momento oportuno e fazer bonito, pois que nunca vieram os momentos, já que a vida é demasiadamente prosaica e a poesia não entra em qualquer lugar.

Descobri a vida pelos livros – contei isso ainda ontem a uma amiga. Muito introvertida, sempre foi um gozo pra mim observar por dentro de cada personagem, ombrear-me com o narrador, fazer meu luto ao fim de cada história, acompanhar personagens ao longo de sua saga, como o fiz com Clarissa e Vasco, personagens de Érico Veríssimo. Enfim, foram os livros a janela através da qual comecei a conhecer o mundo e a entender a complexidade da alma humana.

Minha mãe – deus a livrasse! – nunca falava de sexo com os filhos. Meu pai tampouco, que eram muitas mulheres, um único filho homem, e a responsabilidade era demasiada. Assim, foi pela literatura que me iniciei também nas “coisas proibidas”, e muito, muito mais tarde ainda podia lembrar das lições que aprendi com gente sem vida real, figuras fictícias, mas que me eram tão e tão íntimas.

Descobri muitos autores com os quais me identifiquei por algum tempo, uma literatura mais densa, existencialista; mas vieram outras fases diferentes, identificações mais consistentes, algumas releituras e a descoberta de que, enfim, a cada ciclo que vivenciamos encontramos novos autores, abordagens e estilos tão diversificados quanto nos diversificamos nós ao longo de nossas vidas.

Como leitora, em determinada fase de minha vida, apareceu Drummond no meio do caminho. Nunca esquecerei desse acontecimento no meio de minhas retinas fatigáveis. Ele veio justamente quando eu havia aprendido que o sarcasmo dá voz ao grito abafado e que a confissão poética vale mais do que qualquer sacramento. Amei Drummond à primeira vista. Adivinhei na aridez do poeta a dor invisível do homem. E descobri, mais tarde, que havíamos nascido no mesmo estranho 31 de outubro, espremido sempre entre um feriado e outro. Drummond era, como eu, um “bicho escorpião” – estava explicado!

Mas bom mesmo foi o encontro – tanto tempo depois – com o Drummond erótico! Sim, escorpianamente cáustico, tantas vezes cético, defensivamente lírico, sutilmente ousado, faltava a Drummond – e eu sabia – dar contornos profundos à sensualidade tantas vezes insinuada, aos desejos engravatados, ao vermelho que escorria sub-repticiamente de seus versos.

Ah, tem gente que amava João, que amava Teresa, que amava Raimundo, que amava Drummond... mas que se escandalizou, em pleno 1992, com os poemas eróticos do velhinho, em Amor Natural. Eu, no entanto, amei ainda mais o ilustre itabirense depois que vi revelada a sua face mais bela, aquela que conseguiu reunir “alma e desejo, membro e vulva” e que também teve tempo de revelar: Já sei a eternidade: é puro orgasmo!

Nada estranho para um escorpiano buscar unir os céus e a terra através do sexo. Em seus versos rotulados por muitos de pornográficos ele erotiza e beatifica; deseja e roga; goza e se ilumina. Não por acaso, talvez, duas poetisas – Hilda Hilst e Adélia Prado – tenham sido tão admiradas pelo poeta itabirense: em ambas encontramos a mesma atmosfera místico-sensual que permeia algumas das poesias eróticas de Drummond.

Adélia confessa que, para ela, o erótico é sagrado. Que toda poesia mística é sensual; e que o corpo é erótico para animar a Divindade. Hilda, por sua fez, declarou que mesmo na pornografia ela só queria mesmo era falar do inefável. “Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado”, teria dito a poeta. E os pudorosos que me desculpem, mas desde o primeiro encontro achei Amor Natural lindo. Porque é mesmo lindo o amor natural, tal como é – com suas transcendências e suas incandescências.

Nem sabia eu que falaria hoje no Drummond, mas as mãos foram me conduzindo até ele, embora tenha sido Clarice quem começou a me guiar no post de hoje. Salve, portanto, os poetas, machos ou fêmeas, que souberam não separar o profano do sagrado, que não dividem, que não apartam o que sabem ser inseparável

Li que o meu poeta querido escondia a timidez, o pudor e o lirismo na cerca de espinhos da ironia. Na orelha de Amor Natural está escrito que o livro traz, de Drummond, a sensualidade à flor da palavra, e é isso mesmo. Vejamos:


AMOR, POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL

Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

(Carlos Drummond de Andrade)

Nenhum comentário: