"Sem o animal dentro de nós, somos anjos castrados"
(Herman Hesse)
Primeiro vieram as dúvidas, trêmulas lamparinas a iluminar o rosto da Verdade. A Dúvida é um vento que levanta os finos véus através dos quais enxergamos a existência. Prece libertadora bradada aos quatro cantos do mundo: “Que a Dúvida possa me levar aos inúmeros caminhos que ainda não percorri, até que descubra, enfim, que toda a vida é apenas ilusão”.
E, assim, intensificou-se o vento, derrubando crenças e credos, deixando à mostra verdades que nunca me ensinaram e que contradiziam os ensinamentos de todos os mestres eventuais ao longo do caminho.
Epifanias. Coisas que nunca me disseram incendiaram minha mente com o seu clarão, e eu era então portadora do fogo divino. Como mulher, sabia-me agora guardiã de segredos ocultos, seculares. Vestida no corpo de plácidas anciãs, aprendi a ser guia, a fazer cessar a chuva, abrir caminhos entre as nuvens, a abdicar da condição de costela e a fazer-me inteira, nascida de mim mesma.
Depois veio a noite e o sonho. Uma grande serpente fixou seus olhos rasgados nos meus. Quem era ela e o que queria de mim, eu ainda não sabia. Diminuta, diante dela, esperei. Nada me disse e eu era puro assombro paralisado.
Não era a primeira vez que ela viera. No primeiro sonho, anos atrás, ela tomava, inteira, a cabana coberta de palha onde eu dormia. Assustou-me por ser tão infinitamente maior que eu. Daquela vez deixou silêncio, mudez, fagulhas de luz que reaçalvam as trevas, sem, no entanto desvendá-la.
Agora era diferente. Eu já me dera conta da cauda que eu escondia sob o delicado vestido azul. Eu já conhecia minhas retinas ardendo na escuridão da madrugada. Decifrava os augúrios dos bichos. Meu pranto abafado pelo travesseiro era uivo.
Fiz longo caminho para reencontrá-la. Andei para trás. Troquei o olfato pelo faro. Defrontei-me com minha pele escamosa e arrisquei a poesia sibilante. Sabia que o meu veneno era também antídoto.
A serpente mostrou-se a mim como o velho Deus primário encontrado na origem de todas as cosmogêneses, antes que as religiões do espírito a destronassem. Sua mensagem é revitalizadora: já não necessito da moral simplificadora do Bem e do Mal, que reprime no inconsciente as aspirações e inspirações mais profundas do ser. O velho Deus primário mostrou-me sua face. Agora posso entregar-me à Noite sem medo.
12 comentários:
"Meu pranto abafado pelo travesseiro era uivo."
Muito lindo.
Quantos de nós vivem a ânsia de encontrar em si o velho Deus primário que nos redima e liberte dos medos viscerais e dos atávicos demônios que carregamos na alma?
Um texto que suscita reflexão e toca em instâncias esquivas da sensibilidade.
Gostei muito.
Beijo.
tão poético, tão lírico e tão profundo, intenso
beijo
Concordo plenamente com as palavras de Caroline Godtbil. Esse é um texto para suscitar reflexão. Além de ser belíssimo, mexe com os sentimentos mais "de dentro". E a questão de Deus é sempre atual, sempre necessária.
Enfim, valeu mesmo vir aqui, como sempre.
Beijo beijo.
ola, vi seu blog por causa de um comentário que voce deixou noutro blog, gostei muito do seu blog, não quer ver os meus poemas?? ficaria-lhe muito agradecido
http://assombrado-mc.blogspot.com
"Sabia que o meu veneno era também antídoto."
Não sei se são as mesma coisa, mas estão contidos em nós: É certo!
Talvez que a sutil diferença eteja na dosagem...
Beijo, Tânia!
À medida que teu imaginário se aprofunda mais revela o sibilar de tua poesia. Muito bonito, Tânia,
muito poético!
beijosss
quando sentimos que a vida é uma ilusão toda a realidade se abre.
um abraço, tânia!!
Um texto claro como a água, de navegação imune à aparente incongruência dos caminhos. Aparente porque (quase) tudo é desconhecido, e só o enfrentar dos medos traz alguma luz.
Magnífico, Tânia!
Beijo :)
Cada dia melhor, mais sábia e mais sensível.
Uma bela e rara Tânia essa guria :)
Beijoss
por increça que parível, acha que a dúvida, o limite, o medo estão entre as coisas o que nos dão segurança.
a dúvida nos obriga a pensar.
O fogo em tuas mãos
brilha em tua alma
e o teu corpo
treme
...
beijo carinhoso,
Tânia.
No abismo do viver a gente se joga em busca de um encontro que nunca, nunca nos encontra.
Ternura sempre!
Agradecido pelo texto...
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