3 de março de 2011

A doce emoção da transitoriedade


(Quebrando por um instante o silêncio...)


Entre trilhões de olhares com os quais cruzamos, um ou dois jamais serão esquecidos, ainda que os tenhamos encontrado por uma ínfima fração de segundo. Por que será? Longe de transmitirem precisão, de delinearem claramente qualquer coisa, são esses olhares que propagam, instantaneamente, o mistério. Mas o inesquecível nem sempre traz a marca da impenetrabilidade. O contato com o trivial, o costumeiro, muitas vezes ganha ares epifânicos e a revelação também se dá nas entrelinhas desprezadas da expressão cotidiana. Verdade é que há pessoas, fatos, lugares, frases inesquecíveis.

Às vezes, sem qualquer explicação plausível, sou tomada por uma dessas lembranças e compreendo, assim, que há vivências, objetivas ou subjetivas, que ficam tatuadas para sempre em nossa pele. Nos últimos dias, veio-me a mente um trecho de um livro que se refere ao mito de Anfitrião. E não é a primeira vez que ele me chega à lembrança, inadvertidamente. Eis a história:

Zeus apaixona-se por Alcmena, esposa de Anfitrião, um jovem general do exército grego. Zeus não consegue tirá-la do pensamento, olhando o tempo todo para a terra, para a sombra dela através da janela. Perambula de um lado para outro no alto do Monte Olimpo, quase fora de si por sua paixão frustrada. Mercúrio, com pena de Zeus, sugere que ele arrume uma artimanha inofensiva de guerra, de forma que anfitrião seja convocado, para que, durante sua ausência, Zeus possa se disfarçar de Anfitrião e satisfazer seu desejo de fazer amor com Alcmena. Zeus faz isso. Tudo prossegue de acordo com os planos.

Mas depois que Zeus consuma o ato sexual, tem uma conversa com a mulher de Anfitrião que deixa muito preocupado o chefe dos deuses. Ao voltar para o Olimpo, conta para Mercúrio como é fazer amor com um ser humano. Zeus está na verdade muito perturbado.

"Mercúrio, ela diz 'Quando eu era jovem, ou quando eu for velha, ou então quando eu morrer’. Isso me abala muito. Nos falta alguma coisa, Mercúrio. Nos falta a emoção da transitoriedade – aquela doce tristeza de agarrar alguma coisa que, sabemos, não podemos segurar”.

Não entendo bem por que esse trecho do mito, narrado no livro de Rollo May, A Procura do Mito, me encanta tanto. Talvez porque seja justamente a imortalidade que todos persigamos, consciente ou inconscientemente. Talvez porque a reflexão de Zeus remeta-nos à beleza da fugacidade, algo como uma estrela cadente provocando um micro-incêndio de esperança e se perdendo na escuridão do céu noturno. Ou quem sabe, como afirma Arnaldo Jabor – de quem nem gosto muito – em uma crônica chamada A alegria é um produto de mercado, “... a consciência do tempo finito é o lugar de onde se contempla a beleza”...

Pelo que nos fala Zeus no mito de Anfitrião, a experiência humana da transitoriedade causa inveja aos deuses. Talvez sejam poucos os humanos que se arrisquem a mergulhar nas efêmeras águas do presente, do aqui, do agora, sem garantias...

Lembro neste instante da frase do gênio louco, Antonin Artaud, que diz que o pôr-do- sol é lindo por tudo o que nos faz perder.

Curioso mesmo como o fugidio deixa marcas profundas. Tatuagens invisíveis, talvez...

23 comentários:

Sandra Portugal disse...

Nossa! Que análise profunda e inteligente! Eu sou muito assim de marcar momentos, flashes, como tatuagens invisívesi como você cita! E concordo, viver o presente - pura e simplesmente, como se não houvesse o amanhã e como se não tivesse existido o ontem é um enorme desafio, pelo menos para mim!
bjs Sandra
http://projetandopessoas.blogspot.com//

Andrea de Godoy Neto disse...

Tânia! Saudades de ti, menina...
Essa reflexão é maravilhosa. Várias são as vezes em que suspendo meu pensamento no tempo e deito o olhar sobre a questão da transitoriedade, da efemeridade que nos compõem. Tão difícil aprender a viver o que temos pelo breve momento em que é nosso...mas é o jeito de subir naquele degrau chamado felicidade. Sabendo abraçar o que nos chega e soltar o que tem que partir.

beijo grande pra ti

Maria Emilia Xavier disse...

Sabe Tânia, é por isso que ser adulto, às vezes é muito chato. Com o tempo se adiantando em nossas vidas vamos perdendo a expontâneidade, vamos perdendo a coragem de nos atirarmos aos sentimentos, à vida,sem preocupações com garantias... Deixamos de ver, de viver e de aproveitar as belezas que a nós foram ofertadas e passamos a perseguir coisas já passadas, impossíveis de voltar porque já vividas.
Voltastes postando belamente.
PS: Como você, também, não tenho total simpatia pelo Sr. Arnaldo Jabor. Coincidências...

Marcantonio disse...

Tânia, essa relação entre a transitoriedade e a beleza está expressa belamente na famosa frase do Fausto sobre o momento.
Quando perceberemos que talvez a busca de transcendência seja a mais desgastante das nossas formas de ilusão e negação? Ao menos da transcendência pela transcendência, forma estranha de abdicação e quase loucura. É na imanência que pode estar alguma forma de supervivência, por contraditório que pareça.
Penso muito nisso, é a minha grande questão particular. Por que me impaciento com tanto que há ao meu redor como se o importante estivesse mais à frente? É como se a minha ânsia de conhecer partisse do pressuposto de que o que está próximo já é conhecido. E esse é o mais crasso dos erros! E se eu me propusesse a ver cada objeto com que me deparo como se tivesse ele algo a me mostrar, uma nova face, uma insuspeitada forma de presença. Seria provavelmente uma forma de alegria criativa que eu jamais poderia experimentar persistindo em crer que só é valioso o que não consigo tocar. Quero me empenhar em alcançar esse estado.

Belíssimo texto!

Beijo.

Unknown disse...

engraçado como criamos os mitos à nossa semelhança,

beijo

Anônimo disse...

quem sabe a tão buscada imortalidade esteja justamente na transitoriedade... justo no lugar onde jamais iríamos buscá-la... e enquanto isso, brincamos de reis e deuses... perdemo-nos em nossas próprias representações... lutamos como Aquiles e Heitor em luta feroz para alcançar... o quê mesmo?... Bjs. Evaristo

Luiza Maciel Nogueira disse...

é curioso realmente como pouco se percebe do presente e muito do que foi e nos marcou, mas faz parte do humano fazer umas escolhas quase bobas de reviver o vivido por ter amado, ou até quem sabe por medo do desconhecido

beijos!

Gabi disse...

No ano passado, por um breve momento, no banho, pensei: normalmente, as pessoas querem se tornar imortais, mas não percebem que o único jeito de não morrer é não nascer. A imortalidade só pode existir em conjunção com a inascibilidade (neologismo...). Então, não, não quero ser imortal, porque quero nascer!

A passagem de Anfitrião me lembrou o livro Silmarillion, do Tolkien, que relata a criação daquele mundo de fantasia em que se passou a história de "O Senhor dos Anéis". Alguém pergunta à divindade que criou o mundo e todos os seres por que os elfos têm tantos dons, e a humanidade tão poucos. E esse deus responde: a humanidade tem o maior de todos os dons, que é o dom de morrer!

F@bio Roch@ disse...

Bravo!!!

Presente:

"O que falta neste mundo

Há muitas eras percorro a Terra
à procura de entendimento e paz,
à busca de fraternidade e amor,
caridade e solidariedade que sei,
poucos em suas almas encerram.

Outros, talvez a mesquinha maioria,
somente em si pensam e conscientemente
não lhes interessam, dos demais, a dor.

Onde o amor? Onde o amor, onde...?

Caminho agora por ruas
que não lhes conheço as pedras,
mas lembram-me todas as demais
pelas quais meus pés,
já cansados e descalços, têm-me levado.

Os passantes, sempre apressados,
ignoram as estendidas mãos de seus irmãos
a suplicar-lhes angustiados, famintos
e andrajosos, sentados no chão, como óbulo,
uns trocados, para comprar um pouco de pão.

Onde a fraternidade? Onde a fraternidade, onde...?

Penso com profunda tristeza - e constantemente,
nas injustiças todas cometidas neste mundo
já há muito transformado insano, por seres
- que ainda assim, se consideram ’humanos’.

Onde a bondade? Onde a bondade, onde?...

Nesta Terra, há milênios, a Paz desfez sua morada
e levou consigo a justiça, o entendimento,
a solidariedade, a bondade,
a fraternidade e a irmã caridade.

Partiram para outras esferas,
construir a felicidade que só
se pode fazer presente quando as criaturas
abrirem suas almas e mentes
com os corações cheios de amor,
e seu caminhar seja constante,
compassado movimento
a conduzi-las à paz interior.

Esta paz, rara flor, só pode germinar,
nascer e desabrochar no entendimento,
na caridade, na fraternidade e na solidariedade
dos corações iluminados pela graça do Senhor.

Esta Paz só poderá manter-se
com a inquebrantável força do AMOR."

(Mirna cavalcanti de albuquerque pinto da cunha)

Bjs

ALUISIO CAVALCANTE JR disse...

Querida amiga

Talvez a consciência da morte,
nos leve a pensar nas
coisas que poderiam ser vividas
e não serão.
O mistério que nos acompanha...
O por do sol...
Tão lindas e ao mesmo tão tristes
estas palavras...

Que haja sempre em ti,
sonhos por sonhar.

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

"Mas depois que Zeus consuma o ato sexual, tem uma conversa com a mulher de Anfitrião que deixa muito preocupado o chefe dos deuses. "
e assim delicadamente cada um vago do outro assim com o chefe dos deuses ficamos preocupados

ju rigoni disse...

Bela reflexão, Tania! O mistério é a magia que nos mantêm vivos e esperneantes. Abre-se mão da ilusão; do mistério, não. Nem dos deuses que inventamos para mantê-lo vivo.

Bjs, querida. Bom que esteja de volta. Inté!

Claudinha Antunes BA disse...

Taninha, Querida!
Foi o mistério que lhe é peculiar que deixou em mim tatuagens invisíveis e me permitiu perceber o grande presente que é compartilhar dos fugazes momentos que temos compartilhado nesta jornada.
Obrigada por cada revelação, por provocar cada reflexão...
Bjs

AC disse...

Tânia,
O post é interessantíssimo!
Talvez só consigamos dar valor àquilo que nos escapa, nos transcende... Daí à necessidade do mito é um passo.

Beijo :)

Unknown disse...

Muito interessante e verdadeira a sua analise do ser humano, realmente as tatuagens invisíveis são deixadas e marcam cada um de nós sem que se perceba. E os Deuses sabiam o que faziam, por isso deixaram as suas experiencias para que fossem absorvida e seguidas por quem quiser ser paracido com seus espelhos.
Desculpas por demorar a interagir, foi pura razão técnica.
Abraço

Wania disse...

Taninha


Talvez seja isso que deixa a vida mais interessante: queremos sempre perpetuar as coisas no presente, mas nunca paramos de sonhar com o futuro!


Lindo o teu texto, faz pensar...


Bj grande, amiga

Bípede Falante disse...

Que lindo está o blog, Tania :)

Luciana Marinho disse...

comovente post.. belo toque nas profundezas de nossa existência. quantos sentimentos me trouxe... deixo manoel de barros: "tem mais presença em mim o que me falta".

obrigada.

abraço terno!

Silenciosamente ouvindo... disse...

Este seu post amigo merece uma
profunda reflexão.Concordo com
o comentário da Gaby.
Tenha um bom fim de semana.
Bj.
Irene

Marly disse...

Tânia, essa imortalidade todos buscamos e creio eu só na arte nos aproximamos do eterno. O criador saboreia a experiência dos deuses.
Bjs. Lindo texto.

Luna Blanca disse...

Para ser poeta basta ser sincero, escrever o que sente, amar o que realmente deseja, e esquecer a beleza superficial das palavras que formam a poesia, pois se verdadeiro é o seu sentimento, puro será seu coração...e lindas serão suas palavras!

Abstratos Insólitos disse...

Gostei demais deste artigo tem tudo do muito em comum com todas as pessoas, como somos iguais mesmo não rimando.

Machado de Carlos disse...

Que bom que você voltou! Estou feliz com o seu retorno! Quer dizer que você é da Bahia?
Beijos!...